
No dia 12 de outubro, o Brasil celebra Nossa Senhora Aparecida, padroeira do país. A data é marcada por romarias, missas solenes e grande participação popular, sobretudo no santuário e na cidade que levam seu nome, no Vale do Paraíba. Ainda assim, muitos não associam Aparecida diretamente à Virgem Maria, o que faz dela uma figura polêmica no cristianismo.
Embora tenha se tornado central na religiosidade brasileira, Aparecida nem sempre é compreendida da mesma forma pela Igreja e pela população —mesmo entre os católicos. Na doutrina católica, todas as “Nossas Senhoras” são manifestações da Virgem Maria, mãe de Jesus. É o caso de Nossa Senhora de Lourdes (França), de Guadalupe (México) ou da Notre-Dame de Paris. Trata-se de um dos principais elementos do culto mariano.
Na religiosidade popular, porém, muitos fiéis veem Nossa Senhora Aparecida como uma santa autônoma, com identidade e poderes milagrosos próprios. Muitos pedidos e agradecimentos são dirigidos a Aparecida sem menção à Virgem Maria.
Uma das marcas das chamadas “Nossas Senhoras de aparição” é justamente o fato de “aparecerem” como manifestações sobrenaturais em diferentes lugares e épocas. No caso de Aparecida, a imagem foi encontrada por pescadores no rio Paraíba do Sul em 1717 —primeiro o corpo, depois a cabeça. O achado foi rapidamente interpretado como sinal divino, e a imagem passou a ser associada a relatos de graças alcançadas.
Em 1930, o papa Pio 11 declarou Nossa Senhora Aparecida padroeira do Brasil. Em 1980, João Paulo 2º consagrou a Basílica Nacional de Aparecida, hoje o maior santuário mariano do mundo.
A centralidade de Maria, porém, não é unânime entre os cristãos. No catolicismo, ela ocupa um lugar privilegiado por ser a mãe de Jesus. Dogmas como a Imaculada Conceição (Maria concebida sem pecado original) e a Assunção (sua elevação ao céu em corpo e alma) foram definidos ao longo dos séculos por teólogos e concílios. Essas afirmações alimentaram a devoção, mas também geraram controvérsias.
As igrejas protestantes, surgidas no século 16, rejeitaram o que consideram “excessos marianos”, defendendo que a fé deve ter como centro Cristo e as Escrituras. Para esses grupos, Maria é uma mulher de fé, mas não objeto de culto. Já a Igreja Ortodoxa mantém uma veneração semelhante à católica, chamando-a de Theotokos, ou Mãe de Deus.
Como fenômeno religioso, Nossa Senhora Aparecida também pode ser entendida em paralelo com tradições muito antigas. Ao longo da história, era comum acreditar que deuses e deusas se manifestavam em locais específicos, assumindo nomes e títulos locais.
No mundo mesopotâmico, por exemplo, havia diferentes formas da deusa Ishtar: de Arbela, de Nínive, de Akkad. Embora todas fossem, em essência, a mesma divindade ligada ao amor, à guerra e à fertilidade, cada cidade cultivava sua versão própria, com festas, templos e mitos adaptados à realidade local. O mesmo ocorria com divindades egípcias, gregas e romanas.
O deus bíblico Yahweh também teve manifestações locais antes de ser considerado único e com culto centralizado em Jerusalém. Inscrições do século 8º a.C., encontradas no norte do Sinai, mencionam Yahweh de Samaria e Yahweh de Teman. Algumas passagens bíblicas indicam diferentes origens para Yahweh, como Seir, Teman ou Paran.
Essas múltiplas manifestações reforçavam a ideia de que o divino se torna próximo ao assumir um rosto específico, ligado a uma comunidade. A mesma lógica se percebe no cristianismo popular: Maria é uma só, mas se multiplica em aparições e títulos que a tornam mais próxima dos fiéis.
Um dos aspectos mais marcantes da devoção a Aparecida é sua cor negra. Originalmente, a estátua teria cor clara acastanhada, típica das imagens coloniais em terracota. O escurecimento deve-se ao tempo submersa no rio e à fuligem de velas queimadas diante do altar por séculos. Ainda assim, a ideia de uma “santa negra” se popularizou muito cedo.
Em uma colônia portuguesa marcada pela escravidão, a representação negra de uma figura sagrada de grande importância ressignificou a dor da escravidão, afirmando a dignidade dos pobres, negros, libertos e mestiços.
Como era de se esperar, isso gerou tensões e até ataques racistas. Muitos brancos — não apenas da elite — consideravam inadmissível uma versão negra da figura de Maria. Alguns alegavam que isso diminuiria sua “dignidade” em comparação com outras devoções marianas brancas e europeias.
O debate sobre a cor da imagem voltou à tona após o ataque de 1978, quando a estátua foi despedaçada. A decisão dos restauradores do Masp (Museu de Arte de São Paulo) e das autoridades eclesiásticas de manter a imagem negra consolidou, definitivamente, a percepção popular de uma padroeira negra.